quinta-feira, 1 de março de 2012
O RIO COMO CUPIDO
FOI ASSIM
Meu pai era mineiro. Viveu oitenta e três anos, sendo que mais da metade no Rio de Janeiro. Sua primeira visita à cidade não foi a passeio. Saiu de Santa Rita de Caldas, cidadezinha no sul de Minas, quase na divisa com São Paulo, com a missão de levar de volta o filho de um fazendeiro amigo do meu avô, que estava internado na Colônia Juliano Moreira e que havia desaparecido. A Colônia era um hospital psiquiátrico que ficava em Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade. Um dos meus tios morou aqui por uns tempos. Precisando de cuidados médicos, internou-se na Colônia e lá, reconheceu o tal sumido, escrevendo aos pais para contar o paradeiro do rapaz.
Enquanto cumpria as exigências burocráticas para levar o sujeito de volta a Santa Rita, meu pai hospedou-se na pensão da D. Aurora, no bairro do Engenho Novo, uma casa de família em que meu tio, mais tarde, passou também a alugar um quarto. D. Anita tinha duas filhas e gostava de prosear com os inquilinos. Meu pai, um língua solta, como dizia minha mãe, contou-lhe sua origem e despertou um certo interesse na dona da pensão em relação às suas filhas. Sabendo que ele era filho de um boticário importante do interior de Minas, além de ser dono da fábrica de doces e de vinhos do local, tratou de facilitar a aproximação dele com uma de suas meninas. Não teve sucesso com meu pai. Porém, trinta anos depois, recebemos a visita de uma moça morena de olhos verdes, que se dizia filha do tio Celso. O nome dela era Norma e, para ser honesta, era muito parecida com o meu tio, que já havia morrido. Naquela época ainda não haviam desenvolvido o teste de DNA para comprovação de paternidade, portanto, nunca tivemos certeza de nada.
No bonde 72- Meier, a caminho da pensão da D. Anita, meu pai se distraía observando o movimento das ruas e as pessoas que passavam. Foi do 72 que notou a morena bonita encostada no portão que dava para o sobrado em cima da peixaria, na rua Barão do Bom Retiro, no Grajaú. Era lá que morava minha mãe, que ao vê-lo passar no bonde, também se encantou com o rapaz de jeito tímido e chapéu quebrado na testa.
Naquela tarde, depois de um dia de trabalho, minha mãe tinha ido ao portão esperar minha tia que vinha trazer as pilhas do aparelho de surdez da minha avó. Papai resolveu descer no ponto seguinte, mesmo que isso significasse estar a várias quadras do seu costumeiro destino. Aproximou-se com seu jeito calmo e puxou assunto. Os esses pronunciados entre a língua e os dentes, sem o chiado carioca, denunciaram que ele era de fora. Conversaram sobre o que normalmente as pessoas costumavam falar num primeiro encontro, lá nos remotos anos 40. Meu pai contou o estranho motivo de sua vinda e disse que pretendia retornar a passeio, no mês seguinte. Ao final do encontro, com uma reverência comum daquela época, acenou para minha mãe levantando o chapéu com a mão Foi aí que ela pôde ver que, além da moda, havia um motivo especial para tanta elegância: ele era careca!
Minha mãe sempre foi muito desconfiada. Parecia até que a mineira era ela. Achou que a promessa de voltar ficaria só na vontade. Porém, a cada amanhecer renovava a esperança de que seus temores não se confirmassem. Dominava-lhe aquele desejo, negado em tom de esperança, com que as mulheres comumente tentam se proteger das desilusões. “Careca aos vinte e cinco anos? Ele certamente mentiu a idade! Onde já se viu! Deve ser casado”, pensava ela.
Passadas algumas semanas daquela viagem de trem para entregar o fugitivo são e salvo aos parentes que o aguardavam, papai resolveu que havia chegado o momento de deixar Santa Rita de Caldas. Continuar ali significava que seu futuro seria ser, no máximo, o filho do Seu Guilherme, o farmacêutico. Numa família de treze irmãos, mesmo sendo o pai o respeitado boticário da cidade, poucos são os filhos escolhidos para estudar fora. Como era um dos mais novos, cursou apenas o ensino primário, que era traduzido por ele como a faculdade que concluíra aos onze anos de idade. Daquele momento em diante, a cidadezinha seria para ele, uma fértil lembrança e uma eterna e grata saudade.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1947. Gostava muito de dançar e freqüentava os bailes do Clube do América, time que escolheu para torcer. Desde moço já demonstrava simpatia pelos menos favorecidos. Era um homem pacífico e ingênuo também. Num de seus primeiros passeios, resolveu olhar do alto a cidade que escolheu para passar o resto de sua vida. Subiu sozinho o morro do Andaraí, bairro próximo ao Grajaú, e distraiu-se olhando a paisagem e o céu cheio de estrelas. Foi acordado de seus devaneios por um estranho.
- O senhor não é daqui, certo?
- Não, respondeu meu pai, vim só apreciar a paisagem
- Vou lhe dar um conselho, moço. É melhor o senhor descer logo, pois aqui é muito perigoso.
Meu pai agradeceu ao estranho e rapidamente deixou o morro a caminho de casa. Acho que foi a partir desse dia que começou a virar carioca. Trocou o morro pela praia, onde fomos muitas vezes nadar e pescar cocoroca. A presença do mar foi muito forte na vida da nossa família, graças ao fascínio que exercia sobre esse mineiro que decidiu adotar o Rio como sua casa e lutar pela vida nesta cidade. Naquela viagem de trem de volta a Santa Rita de Caldas, seu desejo já era o de conquistar o Rio e aquela morena que ainda o esperava no portão.
Yone de Carvalho Abelaira
Rio de Janeiro, 20 de maio de 2003.
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